É possível produzir leite sem engravidar?

Durante a gestação a glândula mamária recebe estímulos de uma combinação de hormônios placentários que agem diretamente na mama ou estimulam a produção de outros hormônios que vão agir na glândula para promover seu amadurecimento adequado. O objetivo final é preparar a glândula mamária para realizar a sua função primordial que é a produção de leite. 

No entanto, mesmo na ausência da gestação, com a utilização de medicamentos e com o estímulo direto, a glândula mamária pode ser estimulada a produzir leite.  Na literatura existem vários relatos de pessoas, mulheres e homens que observaram a saída de leite da mama após por exemplo, o uso de medicamentos como a digoxina, cimetidina, domperidona entre outros. 

O estímulo direto também é conhecido desde há muito tempo como um potente estimulador da função da glândula mamária. Em 1986, dois autores, Gould e Pyle relataram a história de um missionário que amamentou os filhos, após uma doença de sua mulher que a impediu de amamentá-los. Em 2002, chamou a atenção o relato sobre um homem de 38 anos no Sri Lank que a amamentou suas filhas após a morte da mulher. Ele referiu que a filha chorava de fome e não pegava a mamadeira, no desespero ele a colocou no peito e ela mamando estimulou a produção de leite. E um caso mais recente publicado em 2018 pela dra Reissman foi o caso de uma mulher transexual que amamentou seu bebê exclusivamente com seu leite por 6 semanas após receber tratamento para induzir a lactação.

 

No centro internacional de lactação do Canadá o Dr. Jack Newman vem desde há muitos anos, junto com sua equipe, orientando a indução da lactação para mulheres que não gestaram e que desejam amamentar seus bebês.  Seus protocolos servem de orientação para profissionais do mundo todo.

O que é a indução da lactação?

A indução da lactação é o processo de estimulação da produção de leite pela glândula mamária através do uso de hormônios, galactagogo e estímulo local em pessoas que não passaram pela gestação em um período recente. As pessoas que se beneficiam desse tratamento são mães não gestantes em famílias de dupla maternidade, mães de bebês gerados em útero substituto, mães adotantes, mães e pais transexuais. Para que a indução da lactação possa ocorrer é necessário ter a glândula mamária (mesmo que somente uma parte) e uma glândula hipofisária que funcionem.

Como funciona o processo de indução da lactação?

Existem 3 protocolos básicos que servem como orientação para que o processo seja realizado com segurança. No entanto a indução da lactação é um procedimento que deve ser customizado a partir das necessidades de cada pessoa. Abaixo descrevemos os 3 protocolos.

  1. O protocolo regular

  2. É a melhor escolha para quando se tem tempo para estimular a mama antes da chegada do bebê e envolve 3 etapas.
    1. A primeira etapa inicia-se com o estímulo hormonal da glândula mamária. Deve ser iniciado o mais precoce possível e vai até 6 semanas antes da Data Provável do Parto ou da chegada do bebê. Nessa etapa utiliza-se um anticoncepcional combinado com estrogênio e progesterona e um galactagogo, a domperidona. O anticoncepcional é usado de maneira continua e a sua função é estimular a maturação da glândula mamária. A progesterona é responsável pela maturação dos alvéolos, onde o leite será produzido e o estrogênio é responsável pelo estímulo da rede de ductos que vai transportar o leite do alvéolo até o mamilo. Importante ressaltar que usado dessa maneira não é capaz de proteger contra uma gravidez. A Domperidona, o galactagogo de escolha, é um medicamento utilizado para tratar refluxo gastroesofágico, mas como é um antagonista da dopamina (que inibe a produção da prolactina) funciona como estimulador da prolactina. Importante pontuar que na gestação a prolactina não age estimulando a produção de leite, pois seu efeito lactogênico é bloqueado pela progesterona e pelo estrogênio, nessa fase possui efeito mamogênico, auxiliando o desenvolvimento da mama. Nessa etapa geralmente não se faz o estímulo local da mama, mas tem se notado uma tendencia de se orientar uma massagem leve nas mamas nesse período.
    2. A segunda etapa começa 6 semanas antes da provável chegada do bebê. Nota-se o aumento das mamas e o anticoncepcional é retirado. A domperidona é mantida e o estímulo local da mama é iniciado. Para que o estímulo da mama seja efetivo deve ser realizado a cada 3 horas. Pode-se fazer inicialmente uma pausa noturna até 4 semanas antes da data da chegada do bebê. Mas esse estímulo noturno é importante, pois ajuda muito a aumentar a secreção da prolactina. Como fazer o estímulo local da mama?
      1. Deve-se iniciar com massagem leve nas mamas: deve-se usar os dedos e fazer movimentos do tipo cócegas.
      2. Shake: com ajuda da palma da mão, as mamas devem ser balançadas em todas as direções
      3. A bomba deve ser usada por 5-7 minutos na potência baixa ou média
      4. Repetir a massagem e o shake
      5. Repetir o estímulo com a bomba
      6. Pode-se usar uma bomba elétrica com dupla saída, saída única, bomba manual ou expressão manual.
    3. A terceira etapa inicia-se com a chegada do bebê e o início da sucção no peito. Nessa fase o acompanhamento deve ser bem próximo para garantir que o processo esteja funcionando e o bebê esteja alimentado. Quando for necessário realizar uma complementação deve-se orientar a utilização de um sistema de relactação. O uso da domperidona deve ser mantido pelo tempo que for necessário, a sua retirada deve ser avaliada dependendo da evolução do processo e deve ser bem vagarosa, 1 comprimido a cada 15 dias.
  3. bebe sendo amamentado
  4. Protocolo Acelerado

  5. Esse protocolo é indicado para as pessoas que têm pouco ou nenhum tempo para se prepararem antes da chegada do bebê. Como o tempo para estímulo das mamas é menor e, às vezes a decisão de amamentar acontece já com a presença do bebê, é esperado que a produção de leite seja um pouco mais baixa.
    1. Iniciar o anticoncepcional por 30-60 dias sem interrupção junto com a domperidona. Assim que as mamas apresentarem um aumento significativo, o anticoncepcional deve ser retirado e a domperidona mantida. Se houver tempo antes da chegada do bebê, o estímulo das mamas deve ser realizado com bomba elétrica e sem pausa noturna. Mas se a bomba elétrica não estiver disponível pode-se utilizar bomba manual ou extração manual.
    2. Se o bebê já estiver junto o estímulo da mama será realizado por sua sucção junto com sua alimentação com o uso de um sistema de relactação.
  6. O Protocolo da Menopausa

  7. Se a mulher entrou na menopausa seja na idade esperada ou precocemente por alguma situação clínica, esse é o protocolo indicado. Se ela estiver realizando terapia de reposição hormonal (TRH), deve-se suspender a terapia e iniciar o anticoncepcional. Os sintomas da menopausa poderão ser parcial ou totalmente controlados pelo uso do anticoncepcional (estrogênio e progesterona). bebe sendo amamentado com a mae
    1. Iniciar domperidona com dose mais baixa e aumentar após uma semana.
    2. Manter a combinação do anticoncepcional e domperidona por pelo menos 60 dias
    3. Observe o aumento das mamas.
    4. Se as mamas aumentarem, o anticoncepcional pode ser suspenso e a domperidona deve ser mantida. O estímulo das mamas deve ser iniciado sem pausa noturna.
    5. Após a suspensão do anticoncepcional, os sintomas da menopausa podem retornar, mas se for possível deve-se evitar a retomada da TRH.
  8. Orientações Gerais para os protocolos

    1. O uso de anticoncepcionais com estrogênio deve ser acompanhado por obstetra e o uso da domperidona deve ser avaliado observando-se as contraindicações e os efeitos colaterais.
    2. As doses de domperidona recomendadas mostraram-se seguras em vários estudos com mulheres saudáveis, no entanto é recomendada a realização de ECG antes de iniciar e após 48h de uso do medicamento para descartar arritmia.
    3. Para melhor absorção, a domperidona deve ser ingerida meia hora antes das refeições.
    4. O uso de fitoterápico pode ser considerado.
  9. Observações

    1. Recomenda-se manter uma boa ingestão de líquidos. A mãe deve observar os sinais de sede.
    2. A produção de leite varia de mulher para mulher. Após cerca de duas semanas de estímulo direto da mama a maioria das mulheres já percebem o surgimento de pequena quantidade de leite.
    3. Orientar que a mulher relaxe no momento da retirada do leite. Uma foto de um ultrassom do bebê, roupinha ou um brinquedo ajudam nesse processo.
    4. Providenciar um sistema de nutrição suplementar ou sondas orogástricas número quatro.
    5. O mais importante para estimular a produção de leite é o estímulo por bombeamento da mama e preferencialmente a sucção do bebê diretamente no peito.
    6. O acompanhamento da família deve ser realizado até que a amamentação esteja bem estabelecida.
  10. Apoio e aconselhamento

  11. É importante observar que, embora a lactação induzida seja possível, a quantidade de leite produzida pode variar entre os indivíduos e pode não ser a mesma do leite produzido durante a gravidez. Paciência, persistência e um ambiente de apoio são cruciais durante este processo. O acompanhamento e a orientação de um consultor de lactação ou profissional de saúde com experiência em lactação induzida é muito importante. Eles podem fornecer aconselhamento personalizado, suporte e monitorar o progresso ao longo do processo.
    1. Gould GM, Pyle WL. Anomalies and Curiosities of Medicine. Good Press; 2019. 1164 p.
    2. Reisman T, Goldstein Z. Case Report: Induced Lactation in a Transgender Woman. Transgender Health. 1o de janeiro de 2018;3(1):24–6.
    3. International BreastFeeding Centre | Inducing lactation, breastfeeding a baby when not having been pregnant [Internet]. [citado 17 de outubro de 2020]. Disponível em: https://ibconline.ca/induction/

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Criado por:

Honorina de Almeida - Dr Nina

Pediatra, Doutora em Desenvolvimento Infantil
Especialista em Aleitamento Materno/IBCLC
Sócia Fundadora da Casa Curumim e Fundadora do Instituto Ery