Apesar do incontestável benefício do leite materno para mães e bebês, existem ocasiões em que o profissional de saúde tem que compatibilizar o risco/benefício do uso de medicamento por uma pessoa que amamenta. A recomendação para interromper a amamentação em vigência do uso de medicamento é muito comum apesar de que na maioria das vezes seja possível manter a amamentação ou buscar alternativas medicamentosas mais compatíveis com a manutenção da amamentação.
O entendimento de como um medicamento/droga passa para o leite materno é essencial para que o profissional de saúde possa orientar de forma mais segura e correta as pessoas que amamentam.
Mecanismos de passagem do medicamento do sangue para o leite materno
Após o fármaco ser administrado a quem amamenta ele ganha a corrente sanguínea, atravessa a parede do vaso sanguíneo e pode passar para o leite materno. Essa passagem envolve as membranas biológicas que tem na sua composição proteínas e fosfolipídios que influenciam na passagem e na concentração da substância no leite.
Os mecanismos mais prováveis de passagem de um medicamento do sangue para o leite materno são:
- Difusão passiva - moléculas pequenas ionizadas e proteínas menores atravessam a membrana celular basal pelos canalículos de água. É o principal mecanismo para passagem de um fármaco para o leite materno.
- Difusão transcelular - moléculas pequenas não ionizadas e hidrossolúveis (etanol, uréia) atravessam os poros da membrana celular por difusão.
- Difusão intercelular - moléculas grandes podem aparecer no leite humano, por exemplo, imunoglobulinas, interferon, cuja passagem ocorre entre as células e não através delas.
- Ligação com proteínas carreadoras - substâncias polares penetram nas membranas celulares ligadas a proteínas carreadoras.
Fatores que influenciam a passagem do medicamento para o leite materno
Diversos fatores influenciam essa passagem e a concentração da medicação/droga no leite. Tais fatores podem estar relacionados com o leite materno, com quem amamenta, com o lactente ou com a droga.
1. Fatores maternos
Os fatores maternos estão relacionados às condições do organismo de quem amamenta e das características individuais do leite materno.
Nutrizes com doenças hepáticas e/ou renais podem ter maior dificuldade na excreção dos medicamentos levando a uma maior concentração no sangue assim como manter o fármaco por mais tempo na circulação sanguínea.
A composição de proteínas e lipídios no leite materno também pode influenciar na passagem de medicamentos. Essas proteínas e lipídios podem funcionar como transportadoras do medicamento.
Durante a fase de colostro (primeira semana pós-parto) existe um maior espaço entre as células alveolares mamárias permitindo uma maior passagem de fármacos para o leite materno. Porém, como nessa fase o volume de colostro é pequeno pouca quantidade de medicação chega ao bebê. Após a primeira semana as células crescem e esses espaços intercelulares diminuem.
2. Fatores do lactente
Em relação aos lactentes a idade parece ser um dos principais fatores. São descritos mais eventos adversos em recém-nascidos e lactentes jovens. Isso se deve pela maior imaturidade dos sistemas de excreção de drogas nessa faixa de idade e a maior imaturidade da barreira hematoencefálica (entre o sangue e o cérebro) permitindo uma maior passagem de medicamentos lipossolúveis para o sistema nervoso central.
A taxa de absorção do medicamento pelo trato gastrointestinal das crianças também influencia nas concentrações na sua circulação. Assim drogas que são passadas pelo leite materno, mas tem baixa taxa de absorção pelo trato gastrintestinal dificilmente causarão problemas para o bebê.
3. Fatores relacionados aos medicamentos/drogas
Quais características dos medicamentos/drogas influenciam na sua transferência para o leite materno?
Conhecer certas características das drogas e sua difusão pelo corpo pode ser útil na identificação do risco de seu uso durante a amamentação. Segue as características:
- Peso molecular: moléculas pequenas (menor que 200 dáltons) atingem mais facilmente o leite materno porque atravessam os poros entre as membranas. Movimentam-se então por difusão passiva (exemplo: etanol). Substâncias com alto peso molecular (maior que 800 dáltons) dificilmente passam para o leite materno como heparina.
- Gradiente de concentração: a maioria das substâncias passa para o leite materno através de difusão passiva obedecendo um gradiente de concentração (do mais concentrado – plasma, para o menos concentrado – leite). Altos níveis no plasma provavelmente levará a altos níveis no leite. Saber o pico de maior concentração da droga ajuda a orientar a evitar a amamentação no pico de concentração.
- Volume de distribuição: é um parâmetro usado para medir a distribuição da droga no organismo. Fármacos que possuem alto volume de distribuição “espalham-se” mais pelo corpo levando a uma menor concentração plasmática e consequente menor concentração no leite materno. Dessa forma, medicamentos que possuem um volume de distribuição entre 1 e 20L/kg são compatíveis com a amamentação (exemplo: sertralina)
- Ligação às proteínas plasmáticas:quanto maior a ligação do fármaco às proteínas plasmáticas menor quantidade passa para o leite materno. Um fármaco ligação maior que 80% às proteínas plasmáticas é considerado ideal. Exemplo: ibuprofeno (capacidade de ligação às proteínas plasmáticas de 99%)
- Meia vida: é o tempo gasto para que a concentração plasmática de um fármaco no organismo se reduza à metade. Menores meias-vidas diminuem a exposição do lactente às drogas no leite materno. Somente após 5 meias-vidas, quase todo fármaco (97%) é excretado.
- Grau de ionização: O leite materno é mais ácido (pH 7,1) do que o plasma (pH 7,4). Fármacos que são bases fracas permanecem na forma ionizada no leite materno, favorecendo sua maior concentração.
- Lipossolubilidade: Fármacos que são lipossolúveis tendem a penetrar no leite em concentrações mais elevadas
- Biodisponibilidade oral:é a quantidade do fármaco que é administrada via oral que atinge a circulação. Assim, fármacos com baixa biodisponibilidade oral tem menor risco de ser absorvido pelo bebê quando presente no leite materno.
Conclusão:
O uso de medicamentos pela pessoa que amamenta é uma causa de desmame devido ao desconhecimento dos profissionais de saúde em relação a segurança destas substâncias. Para orientar corretamente é necessário buscar fontes confiáveis de consulta sobre os medicamentos. O entendimento de como os fármacos passam da corrente sanguínea para o leite materno é um conhecimento que nos permite avaliar mais conscientemente as informações disponíveis.
Para saber mais consulte a bibliografia utilizada neste texto:
Departamento científico de aleitamento materno-SBP. Uso de medicamentos e outras substâncias pela mulher durante a amamentação. Nº 4, agosto 2017.
Raminelli, Michele. Medicamentos na amamentação: quais as evidências? Ciênc.saúde colet.24(2). Fev 2019
Ministério da Saúde. Amamentação e uso de medicamentos e outras substãncias. 2º edição, 2014.
Sachs HC; Committee On Drugs. The transfer of drugs and therapeutics into human breast milk: an update on selected topics. Pediatrics. 2013 Sep;132(3):e796-809. doi: 10.1542/peds.2013-1985. Epub 2013 Aug 26. PMID: 23979084.
Sachs HC and Committee on Drugs. American Academy of Pediatrics. The Transfer of drugs and therapeutics into human breast milk: an update on selected topics. Pediatrics, 2013;132(3):e796-809. Disponível em: http:// pediatrics.aappublications.org/content/ pediatrics/132/3/e796.full.pdf
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Criado por:
Tiemi Marli Yoshida
Pediatra, Neonatologista, Especialista em Aleitamento Materno/IBCLC
Sócia da Casa Curumim e Fundadora do Instituto Ery