Atualizado em 14/10/2024

Por Tiemi Yoshida

Pediatra, especialista em Neonatologia e Amamentação/IBCLC

 

O que é Anquiloglossia?

Popularmente conhecida como “língua presa” ou “freio curto” ou “frênulo curto”, é uma anomalia congênita que ocorre quando o tecido embrionário permanece na linha média da face ventral da língua causando restrição da sua movimentação.

Como fazer o diagnóstico?

O diagnóstico da Anquiloglossia é clínico e, portanto, não deve considerar apenas a aparência anatômica, mas também a função relacionada à limitação da mobilidade da língua. Então, é fundamental que os profissionais de saúde realizem a avaliação da mamada e adotem protocolos de avaliação do frênulo lingual validados cientificamente.

Qual a relação entre Anquiloglossia e Amamentação?

Não há evidências conclusivas na literatura sobre a relação entre Anquiloglossia e Amamentação, mas os estudos sugerem que pode afetar negativamente. Os lactentes com frênulo lingual alterado podem apresentar dificuldades no padrão de sucção pela ineficiência na movimentação da língua, ocasionando a formação inadequada do vácuo que é necessário para extração do leite materno, podendo ocasionar dor e/ ou lesões mamilares, ingurgitamento mamário e diminuição na produção de leite.

Em uma revisão sistemática e meta-análise de 2023, Cordray et al demostraram os seguintes resultados:

  • Quase metade (49,3%) das crianças com Anquiloglossia apresentavam dificuldades de amamentação.
  • O desmame precoce atribuído a Anquiloglossia foi de 20,3% e a amamentação não exclusiva de 33,2%.
  • Os principais sintomas que encontraram no bebê foram má pega, fadiga durante a mamada, duração prolongada da mamada ou alta frequência de mamadas, agitação durante a mamada, refluxo gastresofágico, baixo ganho de peso, falha no crescimento, má sucção/cliques, derramamento de leite pela boca e outros como icterícia, engasgos, soluços e gases.
  • Na mãe os sintomas encontrados foram dor nos mamilos, lesão nos mamilos, ingurgitamento mamário, hipogalactia e mastite.
  • Os achados qualitativos em relação a mãe foram desespero, culpa/vergonha, desapontamento e ressentimento com o parceiro.
  • Os resultados da confiança materna na sua habilidade para amamentar demostraram alto risco de desmame.

Como os sintomas do impacto da Anquiloglossia na amamentação não são exclusivos/típicos é fundamental estar capacitado em como avaliar essa situação e em como realizar o diagnóstico diferencial com outras causas de dificuldades no aleitamento para um diagnóstico e tratamentos adequados.

O Teste da Linguinha é fundamental para bebês com anquiloglossia

A avaliação do frênulo lingual deve fazer parte do exame físico de todos os recém-nascidos e realizada como rotina pelos pediatras na maternidade, segundo recomendação da Sociedade Brasileira de Pediatria. No Brasil, a Lei federal, Nº 13.002/2014, tornou obrigatória a Triagem Neonatal da Anquiloglossia em neonatos, em todas as maternidades e hospitais do país. O Ministério da Saúde por meio da nota técnica Nº 52/2023 recomenda o protocolo Bristol como ferramenta para avaliar o frênulo lingual baseado nas evidências científicas disponíveis (Venancio et al, 2015; Brandão et al, 2018). Na literatura, não há consenso sobre qual protocolo de avaliação do frênulo lingual seja mais adequado. Sendo assim, a escolha de um protocolo para implementação em todas as maternidades levou em consideração a praticidade da aplicação, validação envolvendo profissionais não especialistas em disfunção orofaciais e capacidade de predição de problemas na amamentação, que justifiquem a indicação de intervenção para resolver o problema. O Protocolo Bristol foi desenvolvido com base na prática clínica e com referência à Ferramenta de Avaliação da Função do Frênulo Lingual (ATLFF) de Hazelbaker (HAZELBAKER, 1993). Este instrumento é de simples execução e fornece uma medida objetiva da gravidade da Anquiloglossia, auxiliando na identificação dos recém-nascidos que possam se beneficiar com a intervenção cirúrgica (frenotomia ou frenectomia) e na monitorização do efeito desse procedimento. Essa avaliação pode ser realizada por profissional capacitado da equipe de saúde multidisciplinar que realiza assistência à mãe e ao RN na maternidade.

O Protocolo Bristol

O Protocolo Bristol está baseado na avaliação de 4 elementos: (1) aparência da ponta da língua: considerada uma das principais formas de avaliar a anquiloglossia. É frequentemente notada pelos pais e, por isso, pode ser útil para explicar à família a presença de anquiloglossia. (2) fixação da extremidade inferior do frênulo: permite avaliar a presença de anquiloglossia quando sua aparência não é tão visível. Em geral, tem reflexo na aparência da língua com a boca bem aberta. (3) elevação da língua: é de fácil observação durante o choro. Esse é o item que tem se mostrado mais difícil de avaliar e requer conhecimento do avaliador quanto ao grau de elevação da língua considerado normal para um recém-nascido. (4) protusão da língua: se o bebê está dormindo e o avaliador é incapaz de provocar protrusão da língua, os pais deverão ser alertados para observar o quanto seu bebê pode projetar sua língua. Este item costuma ser o primeiro sinal de melhora observado pelos pais após a frenotomia. O Ministério da Saúde em conjunto com pesquisadores e especialistas realizou a adaptação transcultural da versão original em inglês para o português. A versão adaptada é apresentada abaixo:
0 1 2
Ponta da Língua Forma de  coração Pequena fenda/entalhada Arredondada
Fixação da extremidade inferior do frênulo Fixada no topo da gengiva Fixada à face interna da gengiva Fixada ao assoalho da boca
Elevação da língua com a boca aberta (durante o choro) Elevação mínima da língua Apenas as bordas se elevam até o meio da boca Elevação completa da língua até o meio da boca
Protusão da língua A ponta permanece atrás da gengiva A ponta se estende sobre a gengiva A ponta se estende sobre o lábio inferior
Fonte: Venâncio et al 2022.

Interpretação do Protocolo Bristol

Cada item de avaliação do protocolo Bristol recebe uma pontuação de 0 a 2 e a soma dessa pontuação é o escore final que então pode variar de 0 a 8.

Escore de Bristol 8: normal

Escore de Bristol 6-7: são considerados limítrofes e recomenda-se a abordagem “espere e siga”, com suporte no manejo da amamentação.

Escore de Bristol 4-5: são considerados duvidosos e sugerem comprometimento da função da língua podendo ou não afetar a amamentação.

Escore de Bristol 0-3: indicam redução severa da função da língua e potencial comprometimento da amamentação.

Qual a conduta frente ao escore de Bristol alterado?

Os profissionais não devem indicar a cirurgia de frenotomia apenas com o exame do frênulo lingual e o escore do Protocolo Bristol alterado. A conduta frente a um recém-nascido com suspeita ou diagnóstico de anquiloglossia deve sempre levar em consideração se essa condição interfere ou não na amamentação. Dessa forma, a avaliação da mamada é indispensável e deve ser realizada rotineiramente.

A adoção de ferramentas de avaliação da mamada, validadas cientificamente, podem auxiliar evitando avaliações apenas subjetivas. O Ministério da Saúde sugere o Formulário de Observação da Mamada proposto pela UNICEF. Outra possibilidade de instrumento de avaliação da mamada, validado e que já passou por adaptação transcultural para o português é o LATCH (L: pega; A: deglutição audível; T: tipo de mamilo; C: conforto da mama/mamilo da mãe; H: colo/posicionamento).

Para uma avaliação confiável do frênulo lingual e da mamada é importante que o bebê esteja alerta e que a mãe esteja em condições físicas que lhe permitam posicionar o bebê no peito. Em geral, nas primeiras 24 horas vida, estas condições podem não estar presentes, visto ser comum o RN estar sonolento nesse período, e a mãe em recuperação do parto, muitas vezes com dores, que dificultam seu posicionamento para segurar seu bebê recém-nascido. Logo, a avaliação da mamada deve ser contínua durante a estadia na maternidade, com o suporte às necessidades que se apresentem e, em relação à avaliação do frênulo lingual, é importante que seja realizada mais de uma vez, em tempos diferentes, principalmente nos casos de suspeita de anquiloglossia.

Tratamento: cirurgia (Frenotomia) ou manejo da amamentação?

A frenotomia é um procedimento utilizado para o tratamento da anquiloglossia nos recém-nascidos, mas o manejo da amamentação é o passo inicial nos casos de bebês com diagnóstico de Anquiloglossia e dificuldade no aleitamento, principalmente nos primeiros dias após o nascimento, quando muitos fatores podem estar interferindo e levando à dificuldade de amamentação.

A literatura não é conclusiva a respeito do impacto da frenotomia na amamentação, mas muitos trabalhos têm mostrado esse benefício como melhora da dor materna e da pega do bebê.

Revisão sistemática da Cochrane em 2017, concluiu que a frenotomia reduziu a curto prazo a dor nos mamilos das mães.

Cordray et al, 2024, em revisão sistemática e meta-análise, demostrou que a frenotomia melhorou significantemente a dor materna, a pega do bebê e a autoeficácia na amamentação. Benefícios a longo prazo não foram claros, uma vez que o acompanhamento dos pacientes, foi de somente 1 mês.

Nos últimos anos o número de diagnósticos e intervenção cirúrgicas para o tratamento da Anquiloglossia tiveram um aumento espantoso. Walsh, 2017, demonstrou um aumento de 834% nos diagnósticos de Anquiloglossia e um aumento de 866% nas frenotomias entre os anos de 1997 e 2012 nos Estados Unidos vindo de encontro com a literatura publicada em outros países.

Um estudo, realizado nos Estados Unidos, demostrou que de 115 crianças que foram encaminhadas para frenotomia 62,6% NÃO foram submetidas ao procedimento depois da avaliação e suporte/manejo das dificuldades de amamentação por equipe multidisciplinar que incluía fonoaudiólogo.

Estes trabalhos nos levam a reflexão:

“Será que estamos diagnosticando corretamente?”

“Será que estamos indicando cirurgias desnecessárias?”

“Será que estamos sabendo como conduzir estes casos adequadamente?”

A frenotomia é um procedimento cirúrgico que deve ser realizado por profissional habilitado e que não deve ser banalizado porque pode apresentar complicações a curto prazo como aparecimento de cicatrizes, hemorragias, lesão de ductos salivares, obstrução de vias aéreas e aversão oral, e com possibilidade de efeitos a longo prazo, como a memória da dor que pode ser registrada biologicamente e consequentemente alterar o desenvolvimento do cérebro e comportamento.

Nos casos graves de anquiloglossia, escore de Bristol 0-3, em que a amamentação se torna impossível mesmo após o suporte/manejo pela equipe transdisciplinar, a frenotomia pode ser considerada já na maternidade.

Nos casos duvidosos sobre o impacto da anquiloglossia na amamentação, a conduta deve ser conservadora e o seguimento e suporte/manejo próximos e minuciosos do recém-nascido devem ser garantidos até que se conclua mais claramente a causa direta do problema de amamentação.

Uma vez realizada a frenotomia com o seguimento com fonoaudiólogo com capacitação em manejo clínico da amamentação é o cenário mais adequado.

Segue fluxograma de avaliação e abordagem da Anquiloglossia proposto pelo Ministério da Saúde:

Conclusão

O Protocolo Bristol é a ferramenta recomendada pelo Ministério da Saúde brasileiro para avaliação da anquiloglossia em recém-nascidos. Além disso é preciso definir se o frênulo lingual atípico é a causa direta do problema de amamentação. Para isso é indispensável a avaliação da mamada, o manejo clínico das dificuldades de amamentação e a avaliação criteriosa dos sintomas na mãe e bebê para decidir se é o caso de realização de frenotomia.

Mais detalhes da anquiloglossia

Caso queira saber mais seguem referências incluindo a última Nota Técnica do Ministério da Saúde até a publicação deste texto:

  1. NOTA TÉCNICA CONJUNTA Nº 52/2023-CACRIAD/CGACI/DGCI/SAPS/MS E CGSB/DESCO/SAPS/MS.
  2. Venancio SI, Toma TS, Buccini GS, Sanches MTC, Araújo CL, Figueiró MF. Parecer técnico científico do Instituto de Saúde do Estado de São Paulo sobre o tema: anquiloglossia e aleitamento materno: evidências sobre a magnitude do problema, protocolos de avaliação, segurança e eficácia da frenotomia. 2015.
  3. BRANDÃO, C. A.; MARSILLAC, M.W.S.; BARJA-FIDALGO, F.; OLIVEIRA, B.H. Is the Neonatal Tongue Screening Test a valid and reliable tool for detecting ankyloglossia in newborns? Int J Paediatr Dent, v. 28, n. 4, p. 380-389, jul. 2018.
  4. Ingram J, Johnson D, Copeland M, et al. The development of a tongue assessment tool to assist with tongue-tie identification. Arch Dis Child Fetal Neonatal. Ed 2015;100:F344-F348.
  5. HAZELBAKER, A. K. The assessment tool for lingual frenulum function (ATLFF): Use in a lactation consultant private practice. Pasadena, California, Pacific OaksCollege, 1993. Disponível em: https://www.med.unc.edu/pediatrics/education/current-residents/rotation- information/newborn-nursery/hazelbaker_frenum.pdf
  6. VENANCIO, S. l.; BUCCINI, G.; SANCHES, M. T. C.; COLETA, H., OLIN, P., COIMBRA, T. Adaptação Transcultural do Protocolo de Avaliação da Língua de Bristol(Bristol Tongue Assessment Tool -BTAT) e do Protocolo de Avaliação de anquiloglossia em bebês amamentados (Tongue-tie and Breastfed Babies AssessmentTool – TABBY). Relatório de Pesquisa, Instituto de Saúde. São Paulo, 2022.
  7. [1]Riordan J, Bibb D, Miller M, Rawlins T. Predicting breastfeeding duration using the LATCH breastfeeding assessment tool. J Hum Lact. 2001 Feb;17(1):20-3. doi: 10.1177/089033440101700105. PMID: 11847847.
  8. [1] Conceição CM, Coca KP, Alves MRS, Almeida FA. Validação para língua portuguesa do instrumento de avaliação do aleitamento materno LATCH. Acta Paul Enferm. 2017;30(2):210-6.
  9. CORDRAY, H. MAHENDRAN, G.N.; TEY, C.S., et al. Severity and prevalence of ankyloglossia-associated breastfeeding symptoms: A systematic review and meta-analysis. Acta Paediatr, v. 112, p. 347-357, 2023. disponível em: https://www.thejcdp.com/doi/JCDP/pdf/10.5005/jp-journals-10024-3073
  10. Diercks GR, Hersh CJ, Baars R, Sally S, Caloway C, Hartnick J. Factors associated with frenotomy after a multidisciplinar assessment of infants with breastfeeding difficulties. International Journal of Pediatric Otohinolaryngology 2020.
  11. O’Shea JE, Foster JP, O’Donnell CP, Breathnach D, Jacobs SE, Todd DA, Davis PG. Frenotomy for tongue-tie in newborn infants. Cochrane Database Syst Rev. 2017 Mar 11;3(3):CD011065. doi: 10.1002/14651858.CD011065.pub2. PMID: 28284020; PMCID: PMC6464654
  12. Cordray H, Raol N, Mahendran GN, Tey CS, Nemeth J, Sutcliffe A, Ingram J, Sharp WG. Quantitative impact of frenotomy on breastfeeding: a systematic review and meta-analysis. Pediatr Res. 2024 Jan;95(1):34-42. doi: 10.1038/s41390-023-02784-y. Epub 2023 Aug 22. PMID: 37608056.

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Criado por:

Tiemi Marli Yoshida

Pediatra, Neonatologista, Especialista em Aleitamento Materno/IBCLC
Sócia da Casa Curumim e Fundadora do Instituto Ery